quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Um conto que escrevi :

                                               ESCOMBROS


                                                    1


Realmente não sabia onde estava, mas lera o endereço no pedaço de papel amassado que estava em seu bolso e tinha certeza que chegara ao local certo, pelo menos estava escrito, mas nem importava se não lembrava quase nada, até mesmo sobre o papel esquecera. Lembrava algo vagamente, não exatamente porque estava ali, um lugar tão estranho. Pensou em sair ao perceber não saber como era o prédio por fora. Apenas lembranças de acontecimentos um pouco antigos lhe acometiam com o mesmo gosto de café requentado desta manhã por exemplo — embora nem tivesse muita certeza se o que se lembrava fosse mesmo referente a esta manhã ou a ontem à noite, alguns dias atrás, sabe-se lá quando!

Virando a cabeça disfarçadamente cheirou a axila e sentiu que não tomara banho. É, devia ter batido com a cabeça igual acontece nos filmes e pronto passara o dia vagando e acabou chegando ali: um lugar lúgubre apesar das paredes pintadas de vermelho! Havia um relógio na parede marcando três horas e logo percebeu que estava parado, o balcão a direita não deixava dúvida de ser um bar, sem bancos entretanto, algumas mesas à esquerda onde havia mais adiante um pianista muito velho, magérrimo, com ar de tísico e parecia ter os dentes ou muito separados ou salteados: um, vazio, um, vazio... Não tinha a aparência de pianista — e afinal como é a cara de pianista? — por que diabos achou que fosse um pianista?, além de estar sentado próximo ao piano, mas do lado oposto ao teclado; era um semi-cauda muito feio, preto encardido, sem brilho, necessitando de um polimento talvez há muitos anos, dava pra se ver mesmo na penumbra.

O velho se levantou, parecendo ler os pensamentos de quem o olhava tão detidamente, falou alguma coisa soando uma língua estrangeira, fez uma moganguice, soou um certo risinho das pessoas ali presentes, tão poucas, ao menos escalavrou o silêncio, e saltitante como uma criancinha ele se sentou na banqueta parecendo um pianista de verdade. Se deteve pra ouvir o que o velho tocaria e por ver a cena bizarra, sentiu estar com a boca aberta em tempo de uma mosca entrar — havia muitas ali. A música que ele tocou foi não só feia como mal tocada e o som do instrumento não ajudava, era feio, fraco, as teclas precisavam ser golpeadas com muita força!

No final do bar depois de um lance de três ou quatro degraus havia um curto corredor onde no final havia uma cortina vermelho escuro, quase bordô, dava a impressão de ser um cinema, mas ficou com receio de olhar, aquelas pessoas estranhas do bar poderiam falar alguma coisa, afinal não tinha ingresso. Lembrou-se de ter que comprar uma roupa, calça comprida, sim era isso, as suas estavam puídas nas pernas, mas seria ali? Ao seu lado viu duas funcionárias com batas brancas, uma porta de vidro aberta, dentro muita luz parecendo camarim de artistas, a semelhança existia porque era um salão de beleza, sem nenhum cliente, mesmo assim as duas conversavam animadamente contando fofocas e rindo com trejeitos de drag queen que invariavelmente adquirem ao longo da profissão de cabeleireira. Se calaram ao verem aquela pessoa estranha com ar espantado, transpirava o estado confuso em que sua memória vagava, indo e vindo, perdida num labirinto onde sempre esbarrava em paredes sólidas sem nenhuma pista de como chegara ali, quanto tempo andara, nem sobre o papel no seu bolso, o que faria ali realmente, comprar roupas ou o quê?

Assustou-se ao ver uma moça sorridente sair detrás da parede do salão, ela poderia dar respostas pois falava sem parar.

— Você veio, que bom! A sua mãe disse que você viria ver as calças, né? A loja é aqui ao lado, mas sabe o que eu queria? Ela disse que você entende de alimentação, essas coisas, é da área, é? Eu tenho um problema: sou muito magra! Não consigo engordar, acho que os alimentos não param em mim, porque eu como, como, como e não engordo, só fico magra, magra...

Quis dizer que não, que ela estava bem assim, mas ao ver as pernas dela, ficou sem palavras e pior, olhando fixamente, pois nunca vira nada assim, a calça jeans era tão colada e as pernas tão finas, mereciam o epíteto de caniços, não pretendia passar a impressão de tanto espanto, porém todos ali pareciam ler pensamentos.

— Caniço! É isso mesmo, eu não disse? Todo mundo tenta ser falso comigo, não adianta, eu sei da minha magreza. Sabe o que eu comi hoje?

Foram andando de volta para o bar e as duas funcionárias fecharam o salão e andando mais rápido saíram apressadas, já era hora de fechar então? A moça das pernas de caniço não parava de falar, ao se aproximarem do balcão foi como se a voz dela tivesse sumido, lá estava o pianista encalacrado com um trecho de uma música facílima, caso não fosse uma pessoa estranha ali iria ajudá-lo, tocaria, sabia tocar! Conhecia a música: "Assim Ninava Mamã", Villa-Lobos pra petizada . Nem ousaria tocar ali numa espelunca daquelas, sem saber como o pianista reagiria. Quando voltou a si a pernas de caniço tinha sumido. Era hora de ir embora também, pensou em sair, pegou o papel no bolso e leu de novo o endereço. Uma mulher atrás do balcão com fartos cabelos louros, soltos, ria de uma forma esquisita; um cliente com boné, cara de caminhoneiro tomava um cerveja na garrafa, um outro sentado muito largado próximo ao piano ria menos, contudo da mesma forma enigmática. O pianista estava muito, muito chateado, repetia sem parar de errar o trecho e insistia, parecia criancinha quando está estudando, porém com toda aquela idade era patético, por que simplesmente não pulava aquele trecho? O velho pareceu ler o pensamento e balançou a cabeça negativamente, trincou os dentes com raiva e determinação e continuou a errar.

Suspirar e ir embora dali era só o que restava a fazer, claro, ninguém tinha cara amistosa que pudesse lhe ajudar, responder às tantas perguntas perdidas, sendo também tragadas pelo esquecimento.

Virou-se e foi na direção das portas, uma pequena fechada foi a escolhida pra sair, sem saber porque, já que havia a maior escancarada de onde vinha uma forte luz de fora contrastando com a penumbra pantanosa daquele antro; parecia ser uma janela por causa de um batente alto, típico de onde há enchentes, não fosse a distração olhando o pianista embirrado teria visto por onde as três saíram, se por ali ou por esta porta pequena de ferro que empurrou devagar, com cautela, parecia já saber que ela abria pra fora, e por uma nesga viu uma corrente e aos poucos a fera presa à corrente, um cão muito arisco, silencioso, porque cão que ladra não morde, com o olhar de ataque, viu então que havia uma aldrava e um cadeado por fora, não daria pra abrir nem que quisesse, sentiu enorme alívio pois a fera parecia sedenta de abocanhar o que quer que se parecesse com osso, melhor se coberto de carne suculenta.

Olhou de soslaio e todos riam, andou até a porta grande, por precaução olhou se a corrente do canzarrão não alcançaria a aquela distância. Por via das dúvidas se esgueirou pela direita, ouviu o pianista soluçar, sentiu uma pena tão grande, nada poderia fazer, já tinha tanto no que pensar e tentar resolver, como iria ajudá-lo naquela situação? E pra quê? Uma pessoa com aquela idade não deveria ser tão exigente consigo mesmo. Depois queria se afastar dali o mais rápido possível, nem ouvir mais aqueles risinhos indecifráveis, nem sentir o abafado de dentro, por isso começou a passos rápidos e depois desembestou em uma corrida sem direção definida, contanto se afastasse dali. Parou pra recuperar o fôlego e ao olhar em derredor desconheceu tudo, era como e nunca tivesse posto os pés ali, sentiu-se na lua tamanha era a devastação, parecia uma cidade bombardeada, só via ruínas aonde a vista alcançava, o único prédio em pé era aquele e por fora era pintado de vermelho, parecia uma caixa de sapatos assim visto de longe, por que só ele estava de pé, não sofrera bombardeio? Sim era uma boa pergunta. Ali deviam estar os traidores desta guerra, por isso não havia gostado daquela gente desde o começo, em todas as guerras, em todas as lutas sempre há traidores, por isso é mais fácil confiar num cão, não aquela besta feroz, o cachorro acorrentado tão minúsculo perdeu a importância e parecia latir e se mexer mas sem meter mais medo, nenhum som chegava ali, exceto o vento e sua própria respiração.

Sentou num pedaço de parede caída, a caliça começou a coçar em seu nariz, se lamentou por não saber onde estava , nem como chegara ali, quem lhe deu o papel, como sabia o que sabia e não sabia o que importava? Nada à sua volta era familiar. Viu que a luz diminuía, logo escureceria, seria bom achar um lugar pra dormir, mas não havia uma palhoça sequer, nada, nenhum teto, o céu límpido sem nuvens, mas se esfriasse? A solidão não pareceu ruim por causa da breve convivência com as pessoas detestáveis do bar, como dizia o ditado: "antes só que mal..." Mas não , um soluço, era a amplidão que incomodava, era muito espaço pra um ser vivo apenas, não parecia com sua casa de paredes tão curtas e baixas, apenas quatro janelas, uma porta e o espaço exíguo compartilhado com plantas, com os móveis e livros — quando são bons parecem gente! — e então sentiu saudade da limitação de passos , de ter um mapa desenhado de cor, sabendo se mover pela cidade , conhecendo tantas pessoas de tantos estabelecimentos, de ver tantos bichos, mesmo os asquerosos do esgoto, até o esgoto dali estava destruído, destruição a perder de vista e em breve não veria mais nada, anoitecia muito depressa por ser inadiável e esta certeza calou dolorida em seu peito, chorou desbragadamente, lembrou do pianista ridículo e se comparou a ele, como?! Ser ridículo é privilégio ou desgraça de poucos, não sabia mais graduar os adjetivos, sabia apenas sentir saudade de tudo e chorar. No labirinto turbilhonavam todas as imagens, sons, cores, cheiros, toques, sabores, sentimentos, tudo de bom, sonhos, imaginação, a medida que volteava aumentava mais ainda a falta. Escurecia e volteava, escurecia e volteava e...

A noite surgiu medonha escondendo toda a ruína, poderia trazer o sono que a todas as dores mitiga, poderia trazer um esquecimento maior do passado mais distante, poderia também não trazer a aurora — trivialidade desde tempos remotos sobre o planeta, sim o planeta! Ao lembrar da Terra parou de girar. Nem mais voluteava, nem chorava. Ainda respirava. Sim , já lamentara tudo que tinha pra lamentar, então lembrou do Planeta tão bombardeado por gente estúpida, tão grande pra quem é tão pequeno e tão pequeno dançando num Universo tão grande. Sem ter matado as saudades entretanto reconheceu nas estrelas a mesma noite que a tudo envolve, um consolo, a constatação que a Terra gira apesar da Santa Inquisição, sua memória guardava ainda o essencial pra se viver, faltava apenas um pequeno lapso e com o cansaço de um dia — ou foram vários? — igual uma criança, adormeceu suavemente.


                                                        2


Sim, havia dormido sobre escombros. O cheiro de caliça com pólvora — urânio empobrecido tem cheiro? — e o que mais usaram pra destruir? O fedor invadia o nariz de maneira veemente até o sono dissipar tudo, mas acordou e... Surpresa!

Estava em uma praia. Sofreria de sonambulismo sem saber? Vá lá uma praia muito estreita e muito curta, sem virar a cabeça, só com a visão lateral abarcava um lado e outro, começo e fim, e o mar a frente tão calmo, parecia morto.

Como acordara ali? Se dormira na cidade destruída por bombas, ultrajada até a nulidade, como despertaria ali naquela praia pequenina com um cheiro de mar queimado, meio doce, nauseabundo, sem ter andado? Mas ainda estava em completa solidão. O sol fumegava igual caldeira, atrás de si um monte com grama tímida, esparsa, aqui e acolá e mais adiante chamuscada. Teria que subir pra ver do outro lado, tento se levantar, as pernas estavam dormente, é ici em Tupi! , então sabia Tupi? Pernas dormentes. Eita! Enquanto batia as mãos nas pernas pra agitar a circulação ouviu risos e vozes, uma animação enorme, balbúrdia, as vozes, sim, eram as duas cabeleireiras e a vendedora de perninhas finas, as três de maiôs antigos do século passado, por quê? Seria carnaval? Mais pessoas , várias sem trajes de banho, vinham com a mesma alegria eufórica. Uma menina esquisita ou seria uma boneca de porcelana?, chegou carregada e a colocaram numa espreguiçadeira, vestia maiô listrado e completamente imóvel, coitada, se fosse gente era tetraplégica, se fosse boneca era muito bem feita!

Eram tantas pessoas com toalhas, cestas, garrafas, farofeiros, conversavam numa língua estranha, sim, igual ao que o pianista falava , esfuziante, incompreensível, totalmente aberrante diante daqueles escombros que vira no dia anterior. Lotaram a prainha.

O mar pareceu se irritar com a algazarra, as pernas já melhoravam, as águas se agitaram repentinamente , fez movimentos pra subir o morro e foi justo em tempo de escapar pois ondas enormes começaram a se formar, quebravam cada vez mais na estreita faixa de areia até se formar uma tão gigantesca, fácil prever o que aconteceria, as pernas ainda preguiçosas desembestaram aos trancos e barrancos, todos chisparam numa debandada exuberante e a menina-ou-boneca de porcelana ou paralítica?, sabe-se lá!, quis gritar pra alguém salvá-la, não sabia a língua deles e já era tarde demais. A onda quebrou sobre a boneca-ou-guria de cerâmica e em seguida o mar se acalmou, o ataque de cólera aplacado e o povaréu que o desencadeou sumiu. Desceu pra ver a menina que continuava na espreguiçadeira, afinal era uma boneca mesmo, mais bem acabada que um guerreiro de Xian, que pena, estava esfacelada em vários pedaço, o crânio estava aberto e dentro, se agachou e viu, havia um montão de jóias, pedras preciosas brilhavam, pérolas, ouro, enquanto admirava aquele tesouro ouviu um som vindo dela... Riu Devia ser impressão, ah, riqueza, o som devia ser alucinação auditiva, com certeza não poderia ser, a boneca.. não, boneca de porcelana não... Outra vez! Boneca nenhuma peida! Outro, maior! Ergueu-se por ímpeto e ficou imóvel um átimo e ao sentir o mau cheiro saiu correndo, correndo, subiu o monte e sem fôlego parou numa inquietação absurda porque estava diante de uma metrópole. Quê?! Sim uma grande cidade como... qualquer uma, são todas semelhantes: fétidas, mal urbanizadas, poluídas, repletas de mazelas, se espalham igual câncer, com excesso de carros, superpopulação de gente, ratos, animais de estimação, cheias de barulhos, cores, sinais, propagandas e olhares escorregadios que nada vêem.

Boquiabertamente deambulou, ah, o sonambulismo leva as pessoas aos lugares mais estranhos, esta seria uma explicação plausível, ou outros distúrbios do sono, são tantos! É mesmo! Então bastava ir até um hospital público, aonde? Perguntar não parecia ser boa ideia, a todos que lançava um olhar não encontrava receptividade, se sentiu invisível, tantos quase esbarravam em seu frágil corpo que os movimentos contorcionistas pra se desviar já causavam dores. Avistou um prédio tão alto, tão branco, lhe pareceu um hospital. Entrou e as pessoas lhe cravaram de olhares pasmos lhe deixando mais sem norte do que já estava. Um balcão branco, tudo tão branco, tão limpo, dissonante da sujeira das ruas , todos limpos e de roupas brancas, exceto aquela amnésica criatura desconfiada , deslocada, ao se aproximar do balcão não o tocou com medo de sujá-lo. Desconfiava de seu fedor, não sentia, mas talvez porque o olfato já tenha se acostumado, de soslaio se viu ainda cravejado de olhares impiedosos. Nem fedia muito, só um pouquinho!

Abriu a boca balbuciando pra uma enfermeira de farda e chapeuzinho plantada detrás do balcão, gorda, com cara de buldogue, tão branca quanto a roupa que usava, as bochechas caídas, séria de cabelos ruivos, dentes trincados, metia medo, nada disse, apenas apontou pra um cartaz com vários cartões de planos de saúde, deixando bem entendido que ali atendiam apenas pessoas com aqueles cartões. Está bem!

Com o rabinho entre as pernas e passos miúdos, diminutos devido ao vexame, à humilhação, ainda olhou ao redor como se pedisse desculpas por não ter um cartão de plano de saúde, por não estar de roupas brancas, por não estar com o corpo limpo, não ter memória, não saber quem é, que papel era aquele em seu bolso, NADA! Queria marcar a todas aquelas pessoas na memória, se um dia pudesse se vingar ao menos daquela balofa fouveira, quanta raiva! Ranger os dentes e franzir a cara na rua não adiantava. De inopino ficou de quatro e esmurrou a calçada perfeitinha do prédio de planos de saúde, asquerosamente branca e limpa. Tomou um susto enorme da sua força ou da fraqueza da calçada ao quebrar num dos murros um pedaço grande formando um buraco irregular e ainda de quatro viu lá dentro, embaixo do hospital tão asséptico, um clube noturno, um típico inferninho, com piano, vozes, danças, tilintar de gelo nos copos, risos e a música ótima bem tocada num ótimo piano, se encheu de curiosidade de ver quem tocava tão bem e, não se surpreenderia mais com nada na vida, era ele, o velho não mais ridículo e tocando músicas dificílimas bem à beça, feliz da vida. Todos acenavam tão simpáticos, os mais próximos estenderam as mãos pra puxarem o ser quadrúpede de tão embasbacado, imóvel, caiu delicadamente numa poltrona macia e aconchegante. Apesar da penumbra havia muito brilho na roupa de todos, nos copos, espelhos, o piano reluzente, roupas antigas, uma moça alta lembrava a Josephine Baker dançando saliente, uma baixinha segurando um violão era a cara da Aracy de Almeida e um rapaz ao seu lado bem podia ser o Noel, entram músicos idênticos aos Oito Batutas. Não! Teria morrido e ali era o Céu que o povo fala? Só podia ser ou alucinação. Por via das dúvidas foi até um espelho e fungou pra ver se embaçava. Sim, então ainda não era sua hora de bater as botas. Ao dissipar o embaçamento no espelho o bar todo e todas as pessoas também se dissolveram ficando uma tênue luz , o espelho refletindo sua imagem.

Ah, isto também havia sumido das suas lembranças: sua própria imagem. Houve um certo estranhamento, ver a si e se esforçar pra recobrar alguma recordação com aquela figura — foto, espelho, filme, poça d'água, o que fosse. Riu. Começou a gargalhar animadamente. Passara por escombros de guerra, maremoto, metrópole, boêmia sem a memória completa, cheia de lacunas, ria, maravilhosamente álacre, tocou o espelho e sua face e se vendo no reflexo e sentindo seu apalpar na pele constatou que os vazios de lembranças, os destroços, tudo seria suprível desde que nunca esquecesse que era alguém.


                                                            3


O espelho se abriu igual porta de elevador. Era um elevador e um poço de elevador com um balde mesmo não sendo poço de água, enfim, entrou e desceu até o centro da Terra. E não era como lera na ficção com perigos e tudo mais, nem como diziam geólogos com magma, nem mesmo terra, por que o planeta se chama Terra então? Deveria se chamar vácuo. Planeta Vácuo. Seria o Inferno que o pessoal fala? Qual o quê! O mais completo vão a perder de vista e silêncio absoluto, nem o chiar do silêncio ouvia e o tato parecia ter se evaporado, seu peso desaparecera, flutuava no mais completo vazio lhe envolvendo ao contrário das pessoas que aparecem na televisão e têm o oco dentro delas.

Um susto a mais não faria diferença. Começou a escutar o trotar de um cavalo. Toc-toc-toc. Quando se virou havia um branco, enfeitado, tão lindo, parecia rir ao relinchar e meneava a cabeça como se quisesse indicar uma ação. Nem precisou mais que isso! Quem não adoraria passear num corcel tão simpático? Só depois lembrou que ali não havia chão, era o vácuo, e já havia montado: ora, por que estranharia, o que perderia num fortuito passeio?!

Depois de algum tempo apareceu água salgada, depois doce, de todas as cores, do verde esmeralda ao azul marinho, passando ao marrom escuro, cobre, e além de voar o cavalo também dava mergulhos, pareciam ter brânquias, e sentia o bater das asas invisíveis daquele dócil Pégaso, assim sobrevoaram a Hiléia. Porém havia perigo também naquele paraíso: indígenas esparsos, desprotegidos, falavam tantas línguas, agora a todas entendia, dançavam em inúmeros rituais, comiam, caçavam, brincavam, pescavam, descontraídos, ainda levando a mais frugal existência e também havia caboclos mais conformados com o terrível desígnio, todos tremendo de impaludismo, queimando em febres intermináveis e por isso passivos. Não agüentava ver sem poder fazer nada! O cavalo entendeu e voou mais alto, ainda avistou pastores-geólogos bradando as sandices de sempre, ouviu tratores, motos-serras, tantos horrores!

Contudo ainda havia um céu azul e a imensidão dos verdes das copas das árvores, viu os tantos bichos, as aves uma por um triz não arranhou sua face e quando viu a chuva incomparável igual aos rios de onde vinha, indo de volta num ciclo imemorial, resolveu apear do cavalo como se fosse tão prosaico e ao descer não estava mais em lugares estranhos, nem no ar, na água, vácuo, subterrâneo, nem sentia tristeza, euforia, medo, raiva, estranhamentos, solidão: tudo era familiar! Estava enfim em sua casa pequena de quatro janelas e uma porta, acabara de tomar banho e olhando através da janela, anoitecia e as estrelas incontáveis surgiram no misterioso infinito, se lembrou que por esquecer havia tão pouco e tanto para ser lembrado. Tudo era tão simples e claro.