sexta-feira, 31 de julho de 2009

Segue um conto, digam o que acharem, tá?


VASTIDÃO



Há uma vastidão no mundo incontestável, tanto para dentro quanto para fora — se bem que o exterior esteja milimétricamente mapeado por satélites, ainda é imprescindível a presença física nos espaços a serem conquistados — exato, mesmo tendo oficialmente acabado, o colonialismo e a escravidão prosseguem a todo vapor com dissimulações variadas, quase todas sob uma pele de amizade, mas as garras de lobo são as mesmas que estraçalham a carne, esfolam, dessangram, devoram o que querem e o que conseguem devorar, nunca chegam à saciedade e as presas que habitam estes espaços longínquos — em relação à casa da alcatéia — agradecem emocionadas à amizade, à solidariedade, à caridade e vagueiam moribundos esperando a hora de seus respectivos deuses chamarem, e para onde irão? Pois não é que há um ou outro destes despojos que consegue driblar o que parecia inexorável? Não segue o destino dos outros e resolve sobreviver, ficando até bem alimentado na companhia de quem também conseguiu escapulir — ou sozinho consigo mesmo, a melhor das companhias não havendo outra que não esteja mais exposta ao perigo. Embora esta seja uma preia rara, não é tão difícil conseguir este feito: bastou para isso não olhar, como fazem as gentes desalentadas, a esmo, para longe, nem pôr do sol, nem céus com ou sem nuvens, nem horizontes desérticos ou repletos de florestas, mares, rios, pessoas, construções, formigas, o que fosse, nada — é simples assim: fecha-se os olhos , porém não é para dormir, devanear, cochilar, sonhar, desligando-se da consciência, não! É fechar os olhos para olhar a imensidão no interior de si mesmo, tantas possibilidades, todo um mistério sendo mapeado sem ninguém que saiba ler totalmente e navegar neste semi-sempre-desconhecido espaço, tudo útil ou não, capacidade imensurável ainda quieta até aquele momento. Este é o pulo do gato e foi quando esta ex-presa teve esta consciência e pôde se ver e vendo a si por dentro, não mais em espelhos, ver o espaço interior onde a liberdade é inerente, sem precisar ser alcançada.
Todavia sonhou e no sonho havia umas formas estranhas e deliciosas que moviam-se como dançarinos modernos contorcionando-se e confundindo-se com os artistas circenses , eram todos coloridos e o sabor devia ser muito bom, mas não, não era um sonho de canibalismo, era apenas de caçador e caça e, sim, os contorcionistas eram humanos e ao sonhar, por não ser mais presa, sonhou-se como um não-humano de nariz grande, baba abundante de tanto apetite, língua fora da bocarra, esperando a hora certa para encher a pança e quase concretizava o banquete onírico caso não fosse hora do galo cantar, cedo de madrugada, num momento tão bom! Suas orelhas pontudas do sonho mexeram-se irritadas e, na cama, as orelhas oblongas perceberam o som e duvidaram do momento. Estaria o tempo mais rápido no mundo por causa dessa calendário ocidental ter encerrado um ciclo e começado outro? Por que não contar o tempo desde a pré-história, dos tempos dos nossos antepassados mal-cheirosos, Lucy, Luzia ou outro? Ou desde o primeiro alfabeto ou livro? Tanto faz, convenções são indiferentes, não melhoram nem pioram nada. Afinal, o que é a melhora, senão o que conseguiu a ex-preia recém despertado por um galo colorido e garboso de andar altivo e destemido — perde a fleuma apenas na hora de ir para panela.
O não seguir mapas mas ver dentro, o seguir mapas e ver o exterior, sem o tormento de ter que ser assim ou assado ou saber isto ou nada, nem que tenha que seguir trilhas já conhecidas ou nem tenha nenhuma picada aberta, soerguer o próprio peso e o peso talvez seja estranho para alguém que acaba de chegar desse vácuo infinito interno e após tamanha aventura voltou e vendo a si e ao relacionar-se com a realidade circundante, sentiu um cansaço doce e estrepitoso, desses de quando há uma preguiça maior que o esforço e portanto não se consuma a exaustão; respirou o cansaço de ter ousado desbravar-se e o inebriante eflúvio de si arrebataria até um peixe-boi gigante, quanto mais um simples animalzinho humano que exatamente por isso ao cair da tarde já se encolheu em seu leito sob comentários desconcertantes de sinceras preocupações sem importância e sem implicações objetivas: estaria doente? seria o cansaço? talvez a tristeza da saudade de... de quem mesmo? Não há ninguém que tenha ido embora a não ser a antiga caça dando lugar ao atual ser humano e o sono que nos aparta do mundo por tão pouco tempo parecendo ser por toda a vida, este sono pesado de anos, chegou sendo dissipado somente ao cantar do galo tão eficiente na sua função gratuita de despertador, e com o coração batendo, batendo forte porque temia e os olhos arregalados também, denunciando que não apenas temia como igualmente sentira enorme prazer com o sonho de ser um predador orelhudo, focinhudo, degustando os contorcionistas dançarinos coloridos e deliciosos, sentindo esse gosto concluiu que estava numa encruzilhada asfixiante onde teria de optar — sendo que nunca optara por nada importante na vida — oh!, virar predador ou não? Sentiu um aperto no peito, quase infarto agudo ou mielograma, a dor trespassando a alma delirante de tanta imagem persecutória para distrair a responsabilidade da imprescindível decisão de inúmeras possibilidades, era um leque com tantas hastes impulsionando o mesmo ar, ou um prisma com tantas cores vindas da mesma luz, era ao mesmo tempo a luz e o ar, a mesma ex-presa viajante e ser humano recém-desperto por um galo pontual, agora entre a cruz e a espada, enterrou os pés no chão frio e, fora da casa cálida, no terreiro sob a madrugada esvaecida dando lugar à manhã morna e elucidativa, disse em altas e poucas palavras: Nem o bicho do sonho, nem o que fui até ontem, menos ainda o que querem que eu seja, ou o que pareça ser melhor pra mim: serei o que vi na jornada bem pra dentro de mim... Isso de ser gente é engraçado, mas é o que está nos meus planos: ser. Gente.
Então a amplidão do mundo se apequenou de tamanho, não de importância nem de variedade, pois seus passos eram maiores e mais firmes, porque a vastidão de si já cabia em seu frágil corpo e, tendo-a visto, agora sabia ser inerente à liberdade, e o Sol em seus olhos cegos, refletindo este brilho, surgiu naquela manhã.
 
 
 
 

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Uma poesia

Esta minha poesia pra começar o novo Blog:



Não vou falar-te de sonhos
Não vou falar-te de pesadelos
Falarei apenas da vida comum cotidiana
que surge em ensejos
anseios vagos a trazem
Desejos não realizados
Duma menina que a vê
— sem poder ir voando até a lua —
com olhos frustrados
Alegrias contidas pelas desgraças constantes
Tristezas escondidas das belezas esvoaçantes
— fugitivas do medo assolador —
Mórbidos sons grunhidos a acompanham
E é dito “música” E é dito “viver”
a este tropeço destroçante
E é a Dita Cuja a qual não se perde de vista
que nos prende — a Esperança! —
E por ela digo-te:
Vale a pena viver a vida errante
Porque em laivos despertam a beleza e a certeza
de que é tanto mais o que merecemos
todos nós e ainda não temos
( às vezes dormimos demais)
mas por ver as ruas casas tabernas cemitérios passantes gatos vira-latas e cães retirantes ilustres bêbados bamboleantes
nesgas de luz nas sombras das ruas desertas
e até poluições indigestas como carros fumegantes e gafanhotos comendo a colheita de grãos
e levas de viajantes fugindo com os parcos recursos
tantos consomem com olhos insinuantes
os riscos são todos medidos
e nem um minuto sequer serve para se ver a brilhante Estrela que seria a vida
o dia todo — Todinho! — desde o amanhecer
Se…
…eu te falasse de sonhos